quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Eliane Greice Davanço Nogueira



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MEMORIAL DE FORMAÇÃO



A cena se passa após o término do primeiro dia de aula, na saída de uma escola dirigida por religiosas, numa cidadezinha do interior de Minas Gerais. A mãe, um pouco tímida e com ares de preocupação, no meio do tumulto típico das saídas de escolas, dirige-se à freira e diz:

– Irmã, vim buscar minha filha que está estudando no prezinho.

A religiosa pergunta pelo nome da criança.

– Eliane Greice.

E a professora informa:

– Mas esta criança já se foi com a irmã dela!

A mãe, aflita, rebate:

– Ela não tem irmãos, é filha única!

A partir de então é só alvoroço e aflição, a mãe descrevendo a filha repetidas vezes como uma criança de olhos grandes, cabelos compridos e lisos, bastante esperta e falante. A freira lembra-se perfeitamente da pequena, mas lembra-se, também, que, no meio da confusão de crianças, ela disse que iria embora com sua irmã. E foi.

As duas, mãe e religiosa, passaram a procurá-la pelas ruas próximas da escola e a anunciar seu desaparecimento num serviço de alto-falante que existia na praça da cidade. Numa calçada, encontraram, então, sua lancheira ainda com o guaraná ‘caçula’ da Antarctica sem ter sido consumido.

A essa altura dos acontecimentos, a mãe era choro só, o pai já havia entrado, também, na história e, com sua bicicleta, resolveu ir até em casa – pelos seus cálculos, se ela tivesse pensado como ele, já estaria lá àquela hora.

Para alívio de todos, o pai estava certo. A Greicinha – como ele carinhosamente me chamava – encontrava-se em casa e, quando indagada do porquê de sua atitude, respondeu:

– Todas as minhas colegas diziam para a professora que iam embora com suas irmãs, aí eu falei isso também.

E sobre a lancheira abandonada na calçada, argumentou:

– Estava pesada demais!

(...)

Para continuar a leitura do MEMORIAL, clique abaixo em mais informações.


Quinze anos mais tarde, já na década de 1970, outra cena, com alguns dos mesmos protagonistas, numa praça pública de uma outra cidade de Minas, durante a visita do então Presidente da República João Figueiredo.

Pai e filha encontravam–se no meio da multidão que ouvia o discurso do Presidente.

Eu, assustada, perguntei:

– Pai, o que você está fazendo aqui?

Ao que ele calmamente respondeu:

– Eu tinha certeza de que você estaria presente neste ato e vim lhe recomendar cautela: não apareça muito na manifestação, viu, Greicinha?

Eu imediatamente perguntei sobre minha mãe:

– A mamãe sabe de alguma coisa?

Com toda a cumplicidade, ele explicou:

– Não, eu é que desconfiei que você estaria aqui e resolvi vir conferir, não vou contar nada para ela.

Na seqüência, o que ocorreu foram vaias dos universitários destinadas ao Presidente que preferia cheiro de cavalo ao de gente, muita correria, gás lacrimogêneo e, para a felicidade dos estudantes, portas abertas da catedral!
(...)

Essas duas cenas estão no início deste memorial para evidenciar a presença da escola, destacando o sentido especial que atribuo a essa instituição. A escola, considerando-se a Educação Infantil até a Pós-graduação, representa uma de minhas maiores fontes de prazer.
É certo que o prazer para mim não é fruto só das aulas e do que trazem os professores, mas, principalmente, das relações estabelecidas, nas teias de significados construídos nos diversos espaços que tem margeado meu processo de aquisição de conhecimento. Dentre elas, merecem destaque as amizades que foram sendo construídas ao longo dos anos escolares – algumas que se consolidaram e se mantiveram, outras não se sustentaram por conta de diferenças ideológicas, conceituais, de visões de mundo.

As paqueras e mais tarde os namoros, as leituras de Freud (o eterno mestre), Melaine Klein, Reich, Guatari e Deleuze – que nem eram muito bem entendidas na época, contribuíram de alguma forma para a minha travessia –, as discussões inflamadas sobre política nos botecos da vida, a constituição das chapas do diretório acadêmico que sempre foram motivo de muita polêmica no meio estudantil, ensaios de teatro que entravam madrugada adentro, os acampamentos em lugares íngremes com toda a turma... Enfim, o prazer tem a ver com meu forte envolvimento com tudo que tem cercado minha trajetória de vida.

Formei-me em Psicologia, na época opção única para mim, já que jamais pensei em fazer outro curso e, porque, durante algum tempo trabalhei numa proposta alternativa de atendimento clínico comunitário e num serviço de defesa da saúde mental, inspirado nos trabalhos de Alfredo Moffat e Franco Basaglia* que propunham, na época, a derrubada dos muros manicomiais. Esses trabalhos, apesar de pouco valorizados, eram bastante coerentes com os princípios que sempre orientaram meus posicionamentos e minhas reivindicações – em prol dos menos favorecidos, das minorias discriminadas e em busca de igualdade social. Além disso, algumas companheiras da faculdade trabalhavam comigo – portanto, melhor impossível.

Mas o envolvimento com o trabalho, com as questões sociais, com as amizades, que sempre foram muito fortes, não era tudo dessa época. Mantinha um namoro de sete anos com um rapaz, hoje meu marido, Paulo, também, recém-formado em Engenharia Civil. Por conta desse envolvimento, de nosso amor e de todos os sonhos que juntos construímos, casamos e fomos morar no interior do Mato Grosso do Sul.

Iniciei minha vida profissional trabalhando na Secretaria Municipal de Educação da cidade de Cassilândia/MS, em 1983, como psicóloga e coordenadora pedagógica de uma rede de creches recém-inauguradas, assessorando desde a organização curricular até a orientação dos funcionários envolvidos no projeto. Ao mesmo tempo desenvolvia assessorias e palestras em outras escolas. Participei de um concurso da rede estadual e como professora do curso de Magistério trabalhei com a disciplina de Prática de Ensino e Estágio supervisionado, permanecendo na mesma escola por quase dez anos. Foi um período muito importante para consolidar a minha condição de educadora. Durante o desenvolvimento desse trabalho me senti mais próxima do Magistério, da figura do professor, tornando-me solidária e conhecedora dos conflitos e dilemas que caracterizam a profissão.

Quando me vi frente a frente com uma sala de magistério, não tinha muita clareza do que aqueles alunos queriam de mim, o que eu teria para oferecer a eles e porque a escola contratava uma psicóloga recém-formada para lecionar algumas disciplinas nesse curso. Aos poucos fui respondendo cada uma dessas questões e percebendo que a teoria que eu acabara de ver na graduação poderia auxiliar e muito o trabalho desenvolvido dentro de uma escola e na formação dos futuros professores, ao trabalhar com a disciplina de prática de ensino. Fiquei, assim, cada vez mais próxima da realidade da escola.

Mas, minha relação com os alunos, meus posicionamentos em sala de aula, minha maneira informal de conduzir as aulas eram “entornos”, detalhes que na verdade pesavam mais que a própria teoria que trazia para ser discutida na sala. Porém, isso só fui perceber quando comecei a refletir sobre minha prática, sobre meu fazer e pude constatar que o cotidiano escolar é constituído, de acordo com Certeau (2002), de experiências particulares, de atitudes solidárias e de lutas que vão organizando e delimitando o espaço escolar.

Na época ao trabalhar com uma determinada turma, não entendia porque algumas alunas levavam as mães para me conhecerem na escola ou me apresentavam aos maridos quando me encontravam nos eventos da cidade. Parecia que elas tinham uma necessidade de me levar para outros espaços; levavam para dentro de nossas aulas experiências de suas casas, de suas amizades, de seus trabalhos.

Enfim, hoje consigo perfeitamente compreender essas atitudes, pois da mesma forma com que eu estava me constituindo profissionalmente e descobrindo meu modo de ser na profissão de professora, meus alunos e alunas, também, estavam construindo suas identidades profissionais e para isso selecionavam e vivenciavam situações hipotéticas sobre desempenho profissional, vendo na figura do professor seu “vir a ser”. Os alunos da turma eram muito jovens e precisavam ter a aprovação de seus familiares em relação a alguns desses modelos selecionados, para terem a certeza de que correspondiam não só as suas expectativas, particulares, mas, também, à dos familiares.

Essas experiências, vividas por mim e por minhas alunas, reforçam a discussão sobre formas identitárias desenvolvidas por Dubar (in NÓVOA, 1995) que supõem a dinâmica das identidades sociais e profissionais como um processo simultaneamente estável e provisório de sucessivas identificações.

Ao mesmo tempo em que eu estava sendo um modelo profissional e pessoal para minhas alunas, eu estava construindo minha identidade profissional e social e passava a ser e viver o papel de professora em Cassilândia, pequena cidade do interior de Mato Grosso do Sul.

Fui tão tocada por esse contato que decidi fazer o curso de Complementação Pedagógica em Pedagogia, talvez numa tentativa de me aproximar mais dos professores “de formação”, tornar-me mais igual...

Quando a Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul - UEMS inaugurou uma unidade em Cassilândia/MS, fui cedida pela Secretaria Estadual de Educação para trabalhar nessa instituição onde regularizei minha situação, alguns anos depois, através de concurso.

Essa vivência, também, me aproximou da discussão e me possibilitou realizar um aprofundamento sobre a formação de professores, dando–me a possibilidade de continuar a ocupar-me da formação docente inicial no ensino superior.

Ao integrar-me no quadro dos docentes da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, eu já conhecia as fragilidades da profissão, tão bem lembradas por Ludke e Boing (2004, p.1169), por se tratar de:


grande número de pessoas que exercem a profissão sem possuírem habilitação específica para isso; entrada e saída da profissão, sem o controle dos próprios pares; falta de código de ética próprio; falta de organizações profissionais fortes, inclusive sindicatos, o que deixa os professores em situação ainda mais frágil e outros problemas mais que nem se aproximam de esgotar a lista.

A constatação dessa situação reforçou meu envolvimento em prol da profissionalização docente, fazendo com que meu posicionamento na sala de aula fosse marcado pela idéia de docência não como vocação, missão ou sacerdócio, mas como processo de construção de uma identidade profissional, atravessada por inúmeras dificuldades e obstáculos e, por isso mesmo, norteada pelo domínio dos conteúdos pedagógicos e específicos de forma refletida, crítica e transformadora.

Apesar de assumir tal posição, eu não tinha clareza de que uma das alternativas para isso seria a atitude do professor de se distanciar, minimamente, de sua prática e passar a vê-la numa ótica investigativa, tendo a pesquisa como mola propulsora de sua formação e como um instrumento de valorização profissional, que serve ao fortalecimento da categoria, uma vez que permite ao professor atuar como agente autônomo de sua prática.

Mesmo tendo vivido o cotidiano de uma escola pública, na formação dos professores do curso normal, antes de chegar à universidade, esse conceito e essa possibilidade do professor-pesquisador, sem ser o que faz parte da academia, não foram por mim pensadas. A ênfase dada e alimentada pela universidade em que eu trabalho, em 1998, era ao ensino e a extensão e não à pesquisa, uma vez que o quadro de mestres e doutores estava só começando a se formar. Atualmente esta realidade mudou, o quadro docente se constitui principalmente de mestres e doutores.

Nesse meio-tempo, meu marido e eu já estávamos com três filhos e meus pais já haviam mudado para a mesma cidade, afinal, pais de filha única têm dessas coisas. Já estava trabalhando, também, em consultório e atendia crianças, adolescentes e adultos.

Após 18 anos morando naquela cidade, surgiu a oportunidade de ser consultora do Ministério da Educação, para acompanhar o programa ‘Parâmetros em Ação’. Para isso precisei me mudar para Campo Grande, a capital do Estado. Tal resolução não poderia estar vinculada apenas a uma nova oportunidade de trabalho para mim e, realmente não estava, pois eu já antecipava que meus filhos teriam que sair para estudar fora e esta seria a oportunidade de permanecermos todos juntos.

Depois de algumas reuniões com a família, conversas ao pé-de-ouvido com o marido, que já manifestava vontade de se estabelecer profissionalmente em outro lugar, lá fomos nós todos para uma nova aventura. A pessoa que intermediou a minha contratação ficou surpresa e receosa com a decisão – afinal, durante 18 anos, residindo na mesma cidade, meu marido e eu já havíamos conquistado certa estabilidade e um grande reconhecimento local. Mas nada disso nos impediu de alçar os novos vôos que se anunciavam.

Instalar-me numa cidade com o porte de Campo Grande/MS não foi nada fácil.

Estar numa cidade em que era apenas uma a mais na multidão, de certa forma, foi algo positivo, já que tive minha privacidade resgatada – meus filhos não mais sofriam o peso de serem ‘os filhos da psicóloga’. Mas foi sofrido também, já que no início ninguém me solicitava ninguém me reconhecia por algo que tivesse realizado. Isso fazia de mim uma anônima, mais uma Eliane.

Em alguns momentos, ocorreu-me retornar. Afinal, trocar uma situação estruturada, segura e aparentemente definida por outra totalmente nova e incerta gera insegurança. Mas nem ousei falar sobre isso com meus familiares, já que observava as dificuldades de adaptação pelas quais todos estavam passando. Optei por manter-me calada. Isso não foi tarefa fácil!

Depois de algum tempo na Universidade, trabalhando com os cursos de Letras e Matemática, tive a oportunidade de realizar o Mestrado, em 2000, para isso viajava 800 quilômetros, quinzenalmente. Tratava- se de um mestrado interinstitucional, oferecido em parceria entre a Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul - UEMS e a Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC em Engenharia de Produção.

Essa parceria foi realizada para que a UEMS**, universidade criada recentemente, pudesse dar uma oportunidade de qualificação a seus professores, uma vez que grande parte de seu quadro docente era formado, apenas, por professores graduados e especialistas.

Pode parecer estranho uma educadora ter feito tal mestrado, mas ele me deu a possibilidade de desenvolver pesquisas sob os mais diferentes objetos de estudos e enfoques, pois o grupo era constituído de professores universitários das áreas de Administração, Educação, Economia e outros.

Dentre os autores estudados, destaco Lèvy, (1993) Maturana,(1988) Ferrés,(1997), todos fornecendo-nos insumos na arte de fazer descobertas, inovadores para o tratamento do universo dos fenômenos virtuais. As inovações tecnológicas, a apropriação social da técnica na modernidade, bem como os sentidos da tecnologia educacional eram temáticas discutidas também por outros autores, como Negroponte (1995) Postman, (1994) Giddens (1991) que enriqueceram o curso do ponto de vista filosófico, reflexivo, fazendo com que os mestrandos se voltassem para conceitos, como inteligência coletiva e ciberespaço e considerassem o espaço do mestrado como espaço da dinâmica e apropriação de tais conceitos.

O tema escolhido para minha investigação foi formação de professores, já que eu estava envolvida, tanto com a formação inicial, dentro da universidade, como com a continuada, através dos vários grupos que assessorava. Portanto, planejava centrar minha investigação no município de Cassilândia/MS, com os professores com os quais já trabalhava. Jamais poderia imaginar que acabaria realizando a pesquisa em 57 cidades do estado de MS, investigando a implementação do Programa de Formação Continuada de Professores “Parâmetros em Ação”, que passei a coordenar no Estado.

Em dois anos concluí minha dissertação que recebeu o título ‘Programa de Formação Continuada de Educadores “Parâmetros em Ação” no Estado de Mato Grosso do Sul: um estudo do pretendido e do alcançado’. Essa experiência acabou por me estimular a continuar a caminhada, na qual me encontro hoje.

Quando retomo novamente alguns fragmentos de minha história, que tenho certeza constituíram minha identidade, não os descrevo simplesmente, pois, como Soares (2001) na escrita de seu memorial, “eu interpreto” (p.40), com as ferramentas que tenho no presente, o ocorrido e o sentido que podem ter tido as experiências segundo meu critério, levando em conta minha capacidade de articular o tempo presente, o passado e minhas representações dos dois.

No que diz respeito a essa valorização dada à escola por meus pais, minha percepção mostra-me que fui, também, envolvida por esta crença, já que correspondi às expectativas escolares de forma obediente, tendo sempre boas notas, bom desempenho e papel de liderança na comunidade escolar, quer seja na época do ensino regular – onde o ideal era seguir as normas - ou mesmo na universidade - onde o modelo considerado avançado era a rebeldia, a contestação.

Creio que essa influência me persegue até hoje, pois além de incentivar meus filhos a estudarem e estar sempre disposta a sacrifícios para este fim, continuo buscando essa instituição como forma de me realizar cada vez mais profissionalmente. Não mais de uma maneira ingênua e otimista, como a de meus pais, mas tendo a certeza de que os tempos são outros e que mesmo com a escolarização avançada, os caminhos são e serão ainda mais tortuosos e incertos para se alcançar os ideais – quer eles sejam de realização profissional, de transformação social ou mesmo de interesse financeiro, simplesmente.

É importante que eu declare que só fui refletir realmente sobre minha constituição profissional de maneira intencional, de forma a suscitar minha vontade de querer saber o porquê de pensar como penso e em minha trajetória de formação, ao ingressar no grupo de pesquisa do GEPEC, na condição de doutoranda.

Deixei de agir, apenas para atender às demandas e passei a extrair sentido das experiências passadas e das que estavam por vir, talvez influenciada pelos filósofos que passei a ler, como Bakthin, Larrosa, Nietzsche, que me estimularam a realizar vôos livres, menos preocupada com a possibilidade de cair no precipício. Talvez pelos questionamentos que foram surgindo, que tomaram forma na figura dos colegas que se comportam como leitores críticos e parceiros no trabalho da investigação e pela ação do orientador, que desconfia de nossas verdades, desestabiliza nossas convicções com indagações que por vezes não compreendia muito bem, mas que eram formuladas justamente para me fazer pensar.

Talvez influenciada por questionamentos bem diferentes daqueles que assistimos aos quinze, dezoito ou vinte e poucos anos. Questionamentos que são feitos num momento onde se colecionam verdades menos absolutas e mais relativas, porém, “prenhes de sentidos”.

Nunca um processo foi tão desestabilizador como esse, pois havia desacostumado de tentar me “descobrir”, de retirar de cima de mim os véus que escondem minhas fragilidades, incertezas e deformidades... Agora, encontro-me desnuda (ou quase) e apesar de estar entre pessoas acolhedoras, essa condição é bastante desafiadora, mesmo quando se sabe que é absolutamente necessária, pelo menos por um tempo!

Volto a reafirmar que cada uma dessas experiências norteia e orienta minha caminhada investigativa.


Não tenho bens de acontecimentos.
O que não sei fazer desconto nas palavras.
Entesouro frases. Por exemplo:
- Imagens são palavras que nos faltaram.
- Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem.
- Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser.
Ai frases de pensar!
Pensar é uma pedreira. Estou sendo.
Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo)
Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos, retratos.
Outras de palavras.
Poetas e tontos se compõem com palavras.

(Manoel de Barros)


Coordenar o Programa “Parâmetros em Ação*** no Estado constituiu-se num de meus maiores desafios. Eu, que saía de um município pequeno, onde decidia os temas que abordava tanto na graduação quanto nas assessorias que prestava, agora tinha que seguir as orientações de um programa oficial e coordenar a sua implementação em diversos municípios de MS. Muitas dúvidas surgiram no desencadeamento desse processo.

E os relatórios? E as leituras que precisavam ser aprofundadas? E a montagem da equipe da Rede de Formadores do Estado? Quem convidar? Será que daria conta do recado? Essas perguntas eram recorrentes.

Ao mesmo tempo em que tudo isso gerava dúvidas e angústias, a experiência foi riquíssima, trazendo-me a possibilidade de uma outra leitura sobre o meu fazer profissional. Eu, que sempre estive mais envolvida no curso de graduação com a formação inicial, passava agora a atuar mais diretamente com um grande programa de formação continuada.

Descobri que o que havia experienciado com a formação continuada contribuía muito para minhas ações na formação inicial. Essa constatação trouxe indagações importantes a respeito de meu trabalho nos cursos de formação inicial. Quanta coisa que – só naquele momento percebia – poderia ter feito para auxiliar meus alunos no curso de graduação. A coordenação do programa evidenciou a necessidade de trabalhar sempre a teoria aliada à prática, a importância de um planejamento realizado após uma reflexão rigorosa da prática vivenciada com os alunos, da construção da rotina de sala de aula pautada nas potencialidades dos alunos e da avaliação como instrumento formativo, entre outras.

Resolvi, então, levar para as minhas aulas na Universidade os resultados dessa nova experiência que vivenciava. E junto vieram os autores que conhecera melhor e que, do ponto de vista pedagógico, sustentavam teoricamente o “Parâmetros em Açao”: Perrenoud (2000) e a discussão sobre competências, Zabala (1998) e o tema da prática educativa, Nóvoa (1992) e as histórias de vida dos professores, Alarcão (1996) e a idéia de escola reflexiva.

Meu olhar, antes dirigido muito mais para as questões pedagógicas que envolviam o professor, passou a se voltar também para questões político-administrativas que diziam respeito diretamente à valorização da profissão.

Durante dois anos conheci a maioria das 77 secretarias municipais de educação de Mato Grosso do Sul (MS) e fiquei muito envolvida com o trabalho desencadeado a partir do programa que coordenava. Durante o período de 2000 a 2002, sentia-me como que a resgatar a época dos anos 1970, quando estava completamente envolvida com questões sociais e coletivas. Era como se a experiência se repetisse, só que agora de forma mais efetiva e madura.

Ao iniciar a coordenação do programa, já estava matriculada no mestrado da UFSC, em função de uma parceria estabelecida com a UEMS, Universidade na qual sou professora.

A formação de professores era algo que me interessava e muito me inquietava, e a oportunidade de viver uma experiência tão marcante e importante como à coordenação estadual de um programa oficial do MEC – “Parâmetros em Ação” – permitiu-me delimitar meu objeto de pesquisa. E foi o que aconteceu!

Quando me distanciei um pouco tanto da escrita da dissertação de mestrado como da coordenação do programa Parâmetros em Ação, comecei a me inquietar com a complexidade da temática da formação continuada de professores, entendida não simplesmente como aquela que se inicia após a certificação profissional inicial, mas como um processo permanente de atualização do professor. Comecei a perceber a formação de professores, para além do domínio de novos métodos e técnicas que os capacitem frente à proposta da “moda” ou mesmo àquela adotada pela instituição escolar a qual eles pertenciam; mas como um processo que prepara o professor para uma melhor compreensão de si, de seu papel profissional, da situação escolar como um todo e amplia seu discernimento acerca dos pressupostos filosóficos, sociais e políticos que envolvem a educação.

Diante de tal entendimento, passei a me incomodar com o tratamento reducionista que dava à temática da formação continuada de professores. Após trabalhar algum tempo com a temática, senti que era importante realizar estudos de aprofundamento, pois eu havia sido tocada pela implementação do programa acima citado, passando a vê-lo não só como pretexto, mas também como um espaço de discussão e pesquisa sobre formação continuada de professores.

Com o término dessa experiência, no início de 2002, com a mudança de governo, propus-me aprofundar meus conhecimentos sobre a formação continuada de professores no curso de doutorado. A universidade escolhida foi a Universidade estadual de Campinas, UNICAMP. Minha expectativa era realizar um aprofundamento teórico sobre o ofício de ser mestre e toda a trama que o envolve.

Minhas viagens de Campo Grande a Campinas não foram muito diferentes das que enfrentei quando fiz o mestrado: ônibus quebrados nas estradas, que provocavam acidentes, que eram interceptados pelo Movimento dos Sem Terra... A diferença é que em Campinas reencontrei antigas amigas - inclusive foi através de uma delas, Bete (a pessoa mais pós-moderna que conheço), que fui apresentada ao GEPEC e que comecei a recuperar a proximidade com pessoas amigas, que estabelecera na adolescência, e outras que me acolhiam carinhosamente, a cada vez que chegava depois dos mil quilômetros rodados. Na UNICAMP foi como Greice que me tornei conhecida, espaço que agora me constitui e que – talvez não seja demais dizer – também é constituído por mim.

Quando consigo tomar certa distância em relação à escrita desse memorial, que originou-se em função de uma solicitação da professora Águeda Bittencourt, na disciplina de Literatura Biográfica e Historia Social, consigo perceber os vários papéis que desempenhei e venho assumindo pela vida, deparo-me com o fato de que, contrariamente a uma bordadeira profissional que investe um grande tempo na escolha do desenho e na sua feitura no tecido, quase nunca planejei minhas ações, pensei mais friamente nas conseqüências delas... Fui “bordando minha vida” de acordo com as oportunidades que surgiam, sem me preocupar e sem pensar direito no desenho que se foi formando.

Soares (1991) usa da mesma alegoria para referir-se ao processo de “bordado”:



Apesar de meu olhar não encontrar riscos muito definidos, agrada-me o que vejo, principalmente por ter percebido que o sentimento presente nas primeiras cenas tem se mantido vivo e pulsante, como se o tempo só o tivesse fortalecido.

Inspira-me o poema de Thiago de Mello:

O que passou não conta?, indagarão
as bocas desprovidas.
Não deixa de valer nunca.
O que passou ensina
com sua gana e seu mel.
Por isso é que agora vou assim
no meu caminho. Publicamente andando.


Publicamente andando e escrevendo, resta completar minhas memórias de formação. Mas, afinal, qual foi a base da minha formação profissional como educadora?
  • A importância que sempre dei à escola desde a minha mais tenra idade?
  • A experiência da graduação em Psicologia?
  • Meu primeiro trabalho na educação, como professora do antigo curso Normal?
  • Minhas experiências como formadora de professores, numa época em que nem existia o termo “formador”, e eu era tratada como Orientadora Pedagógica, tanto de escolas particulares como da Rede Municipal de Ensino?
  • Pode ter sido meu ingresso como professora na Universidade Estadual de MS, quando passei a ocupar-me da formação inicial de vários docentes?
  • Ou teria sido minha busca pelo mestrado?
  • Ou, ainda, poderia ter sido meu trabalho como coordenadora estadual de um programa oficial de formação continuada de professores?
Estou certa de que cada uma dessas vivências me constituíram bem como muitas outras que hoje não mais retenho na memória, mas que ficaram retidas na pele, no gesto, no olhar, no coração, de forma a me impulsionar, oxigenar, revitalizar. Elas, embora não iluminadas pela minha consciência, nem por isso perderam a força e o significado que as tornam tão importantes como as que foram aqui citadas.





* Ambos psiquiatras que realizaram trabalhos alternativos voltados para o campo da psiquiatria na década de 1970. Mentores de políticas inovadoras no campo da saúde mental e da reforma psiquiátrica, mais precisamente, Moffat na Argentina e Basaglia na Itália. Suas idéias repercutiram em todo o mundo, e, muito particularmente.
** Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul – UEMS- foi criada em 10 de dezembro de 1993, com sede em Dourados e com ramificações em alguns municípios do estado. Atualmente, já são 16 o numero de municípios que sediam as unidades da UEMS com suas ações de ensino, pesquisa e extensão.
*** A idéia central do Programa Parâmetros em Ação, segundo o Ministério da Educação, era de apoiar e incentivar o desenvolvimento profissional de professores e especialistas em educação, de forma articulada com a implementação dos Parâmetros Curriculares Nacionais.



Vamos bordando a nossa vida, sem conhecer por inteiro o risco; representamos o nosso papel, sem conhecer por inteiro à peça. De vez em quando, voltamos para olhar o bordado já feito e sob ele desvendamos o risco desconhecido; ou para as cenas já representadas, e lemos o texto, antes ignorado (p. 28).




2 comentários:

  1. Adorei seu memorial, que história de vida que nos inspra ainda mais nesta paixão pelos estudos da educação.

    Um grande abraço, espero aprender ainda mais contigo.

    Kethi Squecoloa

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  2. Professora Eliane, você me inspira a continuar nessa trajetória rumo ao campo educacional. Estou quase lá. Obrigada pelo carinho e dedicação.

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