quarta-feira, 4 de maio de 2011

PROFESSOR: CENAS DE UMA IDENTIDADE EM CONSTRUÇÃO



Imagem: Neide Berhends






Professor: Cenas de uma identidade em construção



Carla Helena Fernandes [1]  – UEMS-UNIGRAN
Eliane Greice Davanço Nogueira [2]  – FE/UNICAMP
Ednaceli Abreu Damasceno [3]  – FE/UNICAMP
Renata Barrichelo Cunha [4]  – FE/UNICAMP



O ofício de ensinar não é para aventureiros, é para profissionais, homens e mulheres que, além dos conhecimentos na área dos conteúdos específicos e da educação, assumem a construção da liberdade e da cidadania do outro como condição mesma de realização de sua própria liberdade e cidadania.
Coelho, 1996:43.




Introdução:

A presente reflexão sobre a construção da identidade do professor foi gestada no Grupo de Terça, que constitui uma das atividades do GEPEC – Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada – sediado na Faculdade de Educação da Unicamp. Desde 1998 o GEPEC realiza reuniões com grupos de professores/as que buscam dialogar experiências, refletir sobre a prática pedagógica, aprofundá-la, conhecê-la melhor. Um dos objetivos daqueles que recorrem ao Grupo de Terça é o aprimoramento profissional, partindo do pressuposto que a formação continuada exige um espaço para a reflexão sobre os “fazeres” e “saberes” construídos na prática da sala de aula e nos outros espaços escolares.

Neste ano de 2003 encaminhamos nossas reflexões discutindo a construção da identidade do professor na ótica do atravessamento de diferentes conceitos e concepções: as representações do papel do(a) professor(a) segundo as concepções dos alunos, das famílias, da sociedade e dos(as) próprios(as) professores(as), os modelos identificados nas políticas públicas educacionais e os apelos da mídia. A reflexão necessária nos leva à ressignificação de alguns conceitos e papéis assumidos; significa repensar a identidade do/da professor/professora ‘por dentro’ da profissão e pelos seus sujeitos, o que até então tem sido feito mais pela tradição pedagógica do que pela tradução dos sentidos, desejos e saberes dos professores.

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Partindo da premissa que a identidade do professor pode ser pensada não como um dado adquirido, uma propriedade, um produto, mas como um processo, assumimos que essa dinâmica é um lugar de lutas e conflitos, um espaço de construção de maneiras de ser e de estar na profissão (Nóvoa, 2000). A maneira como cada um se sente e se diz professor, se apropria do sentido da sua história pessoal e profissional é um processo que se refaz continuamente nos espaços escolares e fora deles, produzindo uma identidade flexível e sensível às continuidades, descontinuidades, mudanças, inovações, rupturas.

A construção da identidade do professor, nosso tema neste artigo, destaca cenas de um processo que alude aos quatro elementos da natureza, que metaforicamente constituem momentos, fases, ciclos, estados de um “modo de ser e estar” na profissão. “Modos de estar” - bem estar e/ou mal estar... - influenciados por crenças, que na perspectiva de Sadalla (1998:32) “representam uma matriz de pressupostos que dão sentido ao mundo, não sendo, apenas, um mero reflexo da realidade. Elas vão sendo construídas na experiência, no percurso de interação com os demais integrantes da realidade”.

Nossa idéia dos quatro elementos foi emprestada da Filosofia, lembrando de alguns filósofos que dedicaram-se a relacionar os elementos da natureza e a essência do homem. Os primeiros filósofos gregos são chamados de “filósofos da natureza” porque se interessavam sobretudo pelos processos naturais.

Tales (624-546 a.C.), da colônia grega de Mileto, foi o primeiro filósofo de que se tem notícia e considerava a água a origem de todas as coisas. Talvez quisesse dizer que toda forma de vida surge na água e a ela retorna quando se desfaz. Anaxímenes (585-528 a.C.) também acreditava que uma substância básica subjazia às transformações da natureza. No caso, seu ponto de vista era o ar. Heráclito (544-484 a.C.) assumia o fogo como elemento que permitia as transformações da natureza. Empédocles (494-434 a.C.) defendia que a noção de um único elemento primordial tinha que ser refutada e postulou a idéia de quatro elementos básicos que se combinam de muitas formas para operar nas transformações que vemos. Afirmava que tudo consiste em água, ar, terra e fogo, só que em diferentes proporções de mistura (Andery, Micheletto e Sério, 1987 ).

Cenas que representam a Água, o Ar, o Fogo e a Terra são nossas referências para problematizar os muitos estados do processo de construção da identidade do professor(a).


Cenas, elementos, identidade: possibilidades de construção


CENA 1: Água que dá contorno, envolve, embala: a origem

As identidades são construídas no fazer e talvez o limite da identidade do professor possa estar ancorado no espaço da escola, mais especificamente na sala de aula – parece que a matriz da profissão é a sala de aula, espaço relacional de inúmeros conflitos...”. C., coordenadora pedagógica da rede particular.

Para falar de identidade, optamos por recuperar este conceito segundo a teoria psicanalítica, que postula que as identificações ocorrem, geralmente, de modo inconsciente. De acordo com essa teoria, a pessoa seleciona e acumula numerosas identificações feitas em vários períodos da vida, incorporando aspectos que acredita poder ajudar na realização do ideal desejado de identidade. (Hall e Lindzey,1973).

A apresentação deste conceito se dá em função do fato de acreditarmos que, em se tratando de identidade profissional, o processo é semelhante, sendo possível inferir que os dois processos de construção de identidade dependem um do outro e se alimentam mutuamente.

Na área das Ciências Sociais, Hall (2003) define o sujeito pós-moderno “como não tendo uma identidade fixa (...). A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia” (p.12-13). Portanto, ao analisarmos o depoimento da coordenadora pedagógica referindo-se às identidades “construídas no fazer”, é possível ampliar essa discussão um pouco mais.

Quando estamos atuando como professores, por exemplo, existem identificações inconscientes que, se não determinam, influenciam de maneira considerável nosso fazer – como as experiências iniciais que vivemos no espaço da sala de aula, como alunos(as). Esse processo fica muito claro quando ouvimos/lemos o relato das memórias dos professores que trazem depoimentos como:

No decorrer desses anos escolares foram muitos os professores que tive, cerca de uns cem. (...) todos contribuíram para a formação de minha prática docente, através de atitudes, conhecimentos transmitidos e até mesmo pela maneira que os nossos relacionamentos foram estabelecidos. Com eles aprendi a acertar e a evitar cometer erros no exercício da profissão (Bueno, Catani e Souza, 1998:77).

Isto nos faz pensar que construímos nossa identidade profissional não só no momento em que atuamos profissionalmente, mas desde que começamos a observar o fazer do outro, no caso, o fazer dos nossos professores. E, embora a nossa profissão talvez seja a única em que os modelos são diversos e em quantidade considerável - ao longo de toda a vida escolar- podemos arriscar a dizer que, mesmo os profissionais de outras áreas (médicos, engenheiros, advogados, fisioterapeutas, etc), constituem sua identidade também pela experiência que tiveram com seus professores – fato que nos possibilita afirmar que todos nós, que vivenciamos a escolaridade, temos uma relação com o magistério. Essa circunstância muitas vezes contribui justamente (ou injustamente?) para diminuir o seu valor, porque provoca a idéia errônea de que qualquer um pode ser professor, afinal todos passamos tanto tempo na escola que acabamos incorporando identidades ligadas ao exercício do magistério.

Prosseguindo nossa análise acerca da afirmação da coordenadora - “(...) Talvez o limite da identidade do professor possa estar ancorado no espaço da escola, mais especificamente na sala de aula ...”: existem profissões em que, pelo simples fato da pessoa ter concluído o curso superior, isso já a habilita ao exercício profissional, mesmo que atuando em outra área ou estando desempregado. O indivíduo é reconhecido socialmente como advogado, jornalista, fonoaudiólogo, etc. Já o professor, quando conclui o curso de Pedagogia ou uma das licenciaturas, como Letras, Biologia e outras, não é ainda professor: a condição essencial para tanto é estar atuando na escola. Este fato nos faz acreditar que o que nos constitui como profissionais é a docência e não a graduação...

Podemos lançar, então, algumas questões à reflexão: Seria a formação inicial, cuja responsabilidade cabe à universidade, frágil e insuficiente para cumprir o papel de habilitar o professor ao exercício profissional? Ou a profissão do magistério é que já pressupõe a idéia de ação - atuação acompanhada de formação continuada?

Concordando com a segunda hipótese, buscamos em Hall (2003:14) a justificativa para tanto, já que o autor postula que “as sociedades modernas são, portanto, por definição, sociedades de mudança constante, rápida e permanente”. E nós, como profissionais que atuamos de maneira direta com esta sociedade moderna, necessitamos de um amplo repertório de saberes para atendermos às demandas perturbadoras que exigem novas possibilidades de ação.

Finalmente, a afirmação de nossa coordenadora conclui que “(...) parece que a matriz da profissão é a sala de aula, espaço relacional de inúmeros conflitos...”. O espaço da sala de aula, da escola, parece ser o resultado da implementação da prática das idéias; é o fazer que se defronta com os limites esquecidos pelo ideal e, por este motivo, se constitui no maior dos desafios ligados a profissão docente.

Retornar às indagações iniciais, sobre a construção de nossa identidade, é voltar ao elemento Água, originário de todas as coisas – este retorno nos auxilia a encontrar um sentido para esta questão, já que não se pretende esgotar este tema. O que desejamos é arregimentar novos olhares, responder novas provocações e aceitar os mais recentes desafios...

Se na construção de nossa identidade pessoal perseguimos um ideal desejado de identidade e se vivemos a modernidade, onde as mudanças são constantes, rápidas e permanentes, o ideal desejado sofre alterações constantes, provocando entre nós a instalação de uma crise - de crises, na verdade - de identidade profissional!


CENA 2: AR que oxigena/amplia e sufoca/restringe: conflitos na/da profissão


Que professora eu sou? – sempre me pergunto quando consulto meus registros de aula. Me sinto sozinha, incompetente por não dar conta de vários alunos ‘difíceis’. O dia-a-dia provoca muito desgaste, é muita cobrança”. N., professora de 1a. série da rede pública.


Uma vez que a paisagem social, econômica e cultural está se transformando com rapidez, o próprio processo de identificação “através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais tornou-se mais provisório, variável e problemático” (Hall, 2003: 12).

A crise de identidade, e/ou a crise profissional, refere-se à adoção de concepções e práticas que já não são adequadas ao momento vivido, uma vez que a identidade do sujeito é formada e modificada em um diálogo contínuo com os mundos culturais exteriores e as identidades que esses mundos oferecem. A idéia de uma única identidade é uma ilusão, “uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora narrativa do eu” (Ibid., p.13). A crise está no fato de que a complexidade da vida atual leva à contradições entre as identidades dos sujeitos.

Woodward (2000:9) afirma que a identidade é relacional e tanto simbólica como social: depende do outro e se constitui por meio de processos de inclusão e exclusão a partir das diferenças percebidas, que são marcas sociais. A inclusão à determinado grupo ou classe, por exemplo, traz em si a exclusão daqueles que não fazem parte desse grupo; implica em observar a ausência de similaridades e as diferenças. A crítica que se faz a essa idéia refere-se à concepção da identidade como algo imutável, aos problemas relacionados à impossibilidade da inclusão de modo definitivo e à valorização das diferenças e não da diversidade.

A individuação e a identificação estão relacionadas à construção de aspectos de gênero, história, classe e cultura que, por sua vez, acabam por indicar diferentes posições-do-sujeito (Woodward, 2000; Hall, 2002). A afirmação de uma identidade é definida em um tempo e espaço específico. A identidade profissional do professor também é situada historicamente.

Para Popkewitz (1995:38), profissão “é uma palavra de construção social, cujo conceito muda em função das condições sociais em que as pessoas a utilizam”. Uma sociedade que vive rápidas mudanças tem necessidades diferenciadas e solicita de seus profissionais - entre esses, os professores - que atuem a partir dessa complexidade.

O professor, como todo homem/mulher contemporâneo(a), vive essas contradições e as dificuldades para construir/reconstruir suas concepções, o que promove, não somente a convivência com as transformações constantes, mas com resistências e contradições.

Nesse contexto, o desenvolvimento profissional requer uma formação que seja contínua, assumida pelos próprios professores, centrada na escola e na reflexão sobre a prática e baseada em aprendizagens e objetivos comuns; deve, além disso, propiciar a autonomia e a reflexão como forma de emancipação política.

Para Nóvoa (1995:25), a formação deve buscar relações entre o desenvolvimento pessoal e os projetos da escola, na perspectiva do professor indivíduo e do coletivo docente. A troca de experiências e a partilha de saberes consolidam espaços de formação mútua e o diálogo entre os professores é fundamental. A identidade profissional é concebida como um processo dinâmico, tanto coletivo como individual, e não há como concebê-la fora do grupo e da tessitura de um conhecimento comum. Porém, nas escolas, bem como em outros espaços sociais, a não aceitação das diferenças implica justamente no distanciamento e na impossibilidade de práticas conjuntas. Somente podem ser considerados espaços de aprendizagem as escolas onde os sujeitos puderem, livre e conscientemente, exercer sua profissão, sendo liberdade aqui entendida como a “aprendizagem da relação, a convivência, a cultura do contexto e o desenvolvimento da capacidade de interação de cada pessoa com o resto do grupo” (Imbernón, 2002:14).

Diante das mudanças vertiginosas, as instituições de formação e as próprias escolas, como lócus de atuação, formação e construção de identidades, ainda têm exigido dos professores que respondam sempre “com segurança”, empregando técnicas e estratégias que têm como objetivo a normalização, a padronização. Forma-se um profissional cuja identidade “tão normal é capaz de outorgar identidades normais demais. Uma identidade tão segura que não deve nem precisa duvidar de suas respostas. Sem dúvida, uma identidade livre de inclinações, vazia de intimidade, pois fica reduzida à dimensão técnica, profissional, pública” (Ferre, 2001:205).

A formação necessária, ao contrário, fundamenta-se e justifica-se na idéia de comunicação e de construção do conhecimento e do pensamento por meio de redes (Alves, 2001:25) que se constróem a partir de vários fios que se cruzam e que são oriundos de diferentes pontos. Nessa concepção, o professor, aquele que tece e que cria novos nós em sua rede, ao mesmo tempo que é o construtor de seu saber é, também, partícipe de uma construção que é coletiva. A formação e a construção da identidade se dão em diferentes instâncias e permeadas por diferentes sujeitos e histórias, na escola e além dela, mostrando os múltiplos fios pelos quais são tecidas.

A crise de identidade profissional revelada pela professora que enfrenta dificuldades para lidar com seus alunos, talvez se justifique pelo fato de que temos assumido papéis e tarefas de forma cada vez mais intensa, determinados autoritariamente e estabelecidos longe de nosso espaço de atuação. O papel do professor como inovador ou reformador, função explícita em muitas das políticas públicas atuais, tem levado esse profissional a assumir isoladamente compromissos sociais e educacionais que deveriam envolver atuação conjunta, embora entenda-se que, inserido em um contexto e em um coletivo, é papel do professor propiciar situações de reflexão e aprendizagens que levem às mudanças necessárias, na sala de aula, na escola e na sociedade.

A construção da identidade somente pode ser entendida em um processo contínuo que se inicia muito cedo, mesmo antes da formação inicial, e a crise está nas mudanças das paisagens que levam à identidades transitórias e a um permanente processo de identificação.

As posições-de-sujeito assumidas pelos professores - ou os lugares dos quais falamos - estão também relacionados aos diferentes contextos e momentos e, talvez mais intensamente do que ocorre em outras áreas profissionais, assumimos funções diferentes sem deixarmos de sermos professor. Essa multiplicidade de papéis, por vezes, provoca falta de Ar...


CENA 3: Fogo que queima e consome: a desistência?


Eu reparo que a maioria dos meus professores não gosta de dar aulas. Eles falam: ‘se vocês não querem aprender, o problema é de vocês. Os pais estão pagando a mensalidade, não é? Eu vou receber o meu salário de qualquer jeito’”. A., 14 anos, aluno da 8a. série de um colégio particular citado como referência de uma das professoras do Grupo.

Assumir a crise de identidade do professor, ou de seu contexto, convoca a reflexão sobre o mal estar que aflige professores/as no exercício de seu trabalho, como Fogo que queima e consome as energias e possibilidades de ação, iniciando um processo de desencanto com a profissão. Franchi (1995:79-80) reconhece que “os professores vivem tempos difíceis e paradoxais. Apesar das críticas e das desconfianças em relação à sua competência profissional, exige-se deles quase tudo. As últimas décadas, sobretudo, não foram fáceis para os professores tendo-se acentuado progressivamente os fatores do mal estar profissional”. As causas destacadas pela autora sobre a insatisfação profissional evidenciam problemas nas condições de trabalho, degradação dos salários, inadequação de critérios de ascensão na carreira, que se refletem na falta de estímulo, interesse, falta de crítica, acomodação dos professores. Essa postura costuma ser fonte de escrúpulos, insegurança e mal estar. O declínio social e ético configura uma “profissão desprestigiada, difícil de suportar e de viver de dentro dela mesma” (Ibid., p.80).

A falta de definição clara de papéis também constitui uma hipótese que justifica a crise na escola como instituição e de suas relações. A função da escola foi historicamente mudando, alimentando expectativas, exigindo revisões, gerando confusão de papéis. As várias relações na escola – diretor/professores, coordenador/ professores, professores/professores, professores/alunos, escola/família – sugerem presença de conflitos.

Anunciar-se como professor, hoje, costuma demandar uma série de justificativas adicionais. A atividade da docência é tão pouco prestigiada, que o profissional é considerado “louco” ou “herói”. Esses dois personagens – louco e herói – guardam consigo a idéia de estar à margem, lutando contra a realidade, fazendo alguma oposição. Simples jogo de palavras?

O professor realmente vive e trabalha em condições adversas – jornada sobrecarregada, grande número de alunos por sala de aula, exigências burocráticas, perda de autonomia, etc. – e enfrenta a complexidade da relação pedagógica com os alunos. Essa complexidade nas relações com os alunos representa mais uma evidência de que o papel do professor, do conhecimento e da instituição escolar foram sendo progressivamente banalizadas em nome de uma sociedade que valoriza o consumo, o descarte, a aparência, o individualismo, o prazer fugaz.

A escolarização de massa também tem impedido a personalização dos relacionamentos e o olhar que cuida, acolhe, particulariza. A falta de legitimidade da instituição escolar compromete o contrato de trabalho entre professores e alunos.

O depoimento do aluno desta cena denuncia o quanto muitos professores estão se distanciando de seu compromisso, desistindo de sua tarefa de serem “mestre-de-obras do projeto arquitetado para sermos humanos” (Arroyo, 2000:41).

Os sintomas de exaustão emocional, despersonalização e falta de envolvimento pessoal no trabalho são características de uma síndrome pesquisada desde a década de 70 que afeta profissionais dedicados aos cuidados de outros seres humanos (profissionais da educação, saúde, entre outros). A síndrome de Burnout, como é identificada, significa perder o fogo, perder a energia ou queimar (para fora) completamente. “É uma síndrome através da qual o trabalhador perde o sentido da sua relação com o trabalho, de forma que as coisas não o importam mais e qualquer esforço lhe parece ser inútil” (Codo, 1999:238).

Professores com síndrome de Burnout geralmente dão depoimentos como esse:

...Tanto faz sobre o que estou dando aula, sequer me interessa se foi boa ou não, o que me interessa é que mais uma aula passou...”, “... Tanto faz que meus alunos estejam apaixonados pelo conteúdo ou que as minhas palavras atravessem seu cérebro como a um deserto, cumpro apenas a minha obrigação... (Ibid., p.254).

Características pessoais ou do ambiente de trabalho podem desencadear esse tipo de sofrimento, que compromete a relação pedagógica com os alunos, a parceria com a equipe de colegas, o “fazer” que justifica a função social da escola.

O mal-estar docente pode ainda nos oferecer outras possibilidades de leitura. Esse mal-estar não pode decorrer das dificuldades do professor comprometido com seu trabalho de se adaptar à organização do sistema de ensino ou de uma escola em particular? As relações sociais que o professor estabelece no trabalho – de cooperação ou trabalho solitário – não influenciam na sua disponibilidade e envolvimento com os sujeitos e processos? Como o professor lida com o mal-estar de não reconhecer-se no trabalho ou não cumprir com seus objetivos? O fracasso dos alunos é tomado como fracasso pelo professor?

Vilanizar ou vitimizar o professor não nos permite avançar: o professor, no seu processo dinâmico de definir sua identidade, é vulnerável às condições de trabalho, aos padrões de interação que constrói, à imagem social de sua profissão, à complexidade de um trabalho marcado por incertezas, dúvidas, conflitos de valores.

As possibilidades de encontro, troca, apoio, cooperação, participação nos espaços coletivos da escola pode constituir-se uma alternativa a esse mal-estar, ao Bournout, ao Fogo que consome...

Esses espaços na escola podem reforçar projetos comuns e um sentimento de compromisso. Compromisso...


CENA 4: Terra que sustenta e é sustento: o compromisso.


A identidade do professor/professora se remete ao compromisso profissional ... não é suficiente estarmos professores, nossa profissão exige que sejamos professores”. E., professora universitária.


Desde os primórdios que o elemento Terra tem um significado e uma relação muito forte com os homens. Significa muito mais do que chão. Terra é território político e social. Terra significa lugar onde se tomam decisões, se enfrentam problemas e nunca se perdem as esperanças por maiores que sejam os desencantos. A relação do homem sertanejo com a terra, por exemplo, é muito ilustrativa: uma relação permeada por crenças, esperanças e compromissos, uma relação que enfrenta e desafia a seca. Mesmo advertido de que não compensa plantar, o homem sertanejo deposita na terra o que de mais valor tem: suas sementes. Planta ele acreditando na terra. E quem somos nós professores(as), senão homens e mulheres plantando sementes, acreditando na terra... Nossa terra é nossa profissão e nela há que semearmos, mesmo reconhecendo que a colheita é demorada.

Nossa identidade profissional está sustentada em nosso compromisso com a profissão. Temos que acreditar no nosso ofício. Nosso desafio de ser professor(a), traz a necessidade de nos comprometermos diariamente com nossa profissão, fazendo a cada dia uma pequena revolução.

A palavra compromisso pode até incomodar. Soar como cobrança, dever, obrigação, deixando no ar aquele alarme autoritário. Preferimos dar-lhe o sentido do comprometimento, do acordo, da adesão e da responsabilidade, afinal somos ou não responsáveis por aquele/aquilo que cativamos? Assumir o ofício de ensinar, pressupõe um ato de compromisso. Consultando o dicionário (Fernandes, 1997), achamos várias definições para a palavra compromisso. Uma delas, porém, nos chama a atenção: “promessa solene”. Ou seja, promessa solene com o ofício de ensinar.

Coelho (1996:43) afirma que

A docência é um processo complexo que supõe uma compreensão da realidade concreta da sociedade, da educação, da escola, do aluno, do ensino-aprendizagem, do saber, bem como um competente repensar e recriar do fazer na área da educação, em suas complexas relações com a sociedade.

Tarefa difícil sem dúvida. Como assumi-la sem uma eterna promessa solene com a profissão?

O exercício profissional do magistério requer uma série de esforços, interesses, expectativas, valores e crenças que nem sempre as condições concretas de trabalho colaboram para que os resultados sejam satisfatórios. Mas não podemos desistir. Não enquanto olharmos nossa sala de aula e a vermos cheia de alunos esperando de nós professores, que não desistamos. Não podemos perder a crença na educação e no magistério. Não podemos correr o risco de nos deixarmos envolver por uma atitude negativa, e acharmos que nada podemos fazer. A profissão é difícil e não temos garantia de reconhecimento social, salários dignos, nem condições ideais de trabalho. Às vezes, no exercício da profissão, sentimos vontade de largar tudo, pois os limites se impõem criando barreiras em nossas ações e planos e a esperança se afasta. Mas no dia seguinte, no próprio espaço de trabalho, lá estamos novamente, começamos tudo de novo e a esperança retoma nossas ações e nossos pensamentos. Não queremos ignorar tudo isso, apenas nos propomos a não ignorarmos também as alternativas de superação. É necessário que façamos uma reflexão no sentido de buscar as respostas. Uma reflexão implica sempre numa análise crítica do trabalho que realizamos e principalmente, no comprometimento ou não do que fazemos em/na nossa profissão, dadas certas condições contextuais. E é nesse movimento que a prática e a reflexão sobre a mesma promove o exercício do compromisso.

Nossa profissão nos exige o verbo SER e não o verbo ESTAR. Enquanto estivermos exercendo o ofício de ensinar apenas ESTANDO professores, não poderemos nos identificar como tais. Reafirmamos mais uma vez, nossa identidade é sustentada pelo compromisso. Mas só assumimos esse compromisso quando somos professores e não quando estamos professores. Não podemos “estar” na profissão provisoriamente, temporariamente, alugando uma profissão como se aluga um imóvel. Defendemos que em nossa profissão – magistério - temos que morar nela. Morar no sentido de habitar, achar-se, encontrar-se.

Sabe-se que em sua origem mais arcaica ethos significou “morada” ou “guarida” dos animais, e que só mais tarde, por extensão, se referirá ao âmbito humano, conservando, de algum modo, esse primeiro sentido de “lugar de resguardo”, de refúgio ou proteção; de espaço vital seguro, resguardado da “intempérie” e no qual se costuma “habitar”. O sentido de “habitar” ou “morar” está certamente entranhado no ethos humano; remete à idéia de morada interior. O ethos é “lugar” humano de “segurança” existencial. (González, 1996:10).

Sendo assim, o magistério deve ser “lugar” humano de compromisso profissional com a docência, configurando-se em nossa identidade.

Na sociedade contemporânea, mesmo com as rápidas transformações no mundo do trabalho e das relações sociais e suas identidades transitórias, é indispensável o fortalecimento do compromisso profissional.

Por isso, não é qualquer um que pode ser professor. Por isso não é qualquer professor que pode exercer, parafraseando Terezinha Rios (2001), uma docência da melhor qualidade. Para uma docência tal é preciso um professor comprometido com sua profissão. Um professor que tenha adesão pela profissão, ou seja, um professor intimamente ligado, unido, colado à profissão.

Como o compromisso se manifesta na docência? O compromisso profissional no nosso entendimento se manifesta nas múltiplas dimensões constituintes de nossa identidade construídas nas relações de trabalho e em nossas ações pedagógicas.


  • Na dimensão pessoal – nosso compromisso está presente em nossas crenças, valores, interesses, expectativas, caráter, personalidade e visão de mundo.
  • Na dimensão político-social – nosso compromisso se manifesta em nossas ideologias, nosso posicionamento político, nas análises das condições humanas, em nossa participação de movimentos organizados e na construção coletiva da sociedade.
  • Na dimensão pedagógica – nosso compromisso está presente em nossa prática pedagógica, em projetos educativos, em nossos saberes docentes e curriculares.
  • Na dimensão profissional – nosso compromisso aparece em nossos processos de formação e desenvolvimento profissional, no nível de satisfação profissional.
  • Na dimensão institucional – nosso compromisso se manifesta na busca constante de melhores condições de trabalho, salários dignos, vínculo institucional e reconhecimento profissional.
  • Na dimensão ética – nosso compromisso está presente na reflexão crítica sobre os valores que norteiam as ações docentes, o caráter social da nossa profissão e na construção de uma humana docência, reinterpretando o ofício de ensinar homens a se tornarem humanos.

Portanto, nossa identidade profissional se origina e se constrói por múltiplas dimensões contextualizadas em determinadas circunstâncias históricas, mas o elemento fundante que nos identifica profissionalmente é o compromisso.


Água, Ar, Fogo, Terra: construção da identidade.


No dia-a-dia de professores(as), construímos e reconstruímos nosso fazer, nossos saberes, nossa/s identidade/s. Como a água, a identidade se constrói por meio de um processo e em situações e contextos diferenciados: brota em gotas, se transforma, cresce, desce montanhas e vira rio. Como o ar, que quando venta forte, modela a rocha, enfurece o mar. Como o fogo, que ora aquece e conforta, ora queima e consome. Como a terra, que fornece base, sinaliza caminhos, é fértil se bem trabalhada e cuidada.

As crises decorrem dos embates nesses mesmos contextos – múltiplos contextos, em constantes mudanças e transformações – ciclo da água, estados do ar, combustão, condições da terra – e que acabam dando à identidade um caráter mutante. “Somos (...) o que fazemos para transformar o que somos. A identidade não é peça de museu, quietinha na vitrine, mas a sempre assombrosa síntese das contradições nossas de cada dia” (Galeano, 1991:123).

Como está o professor nesse processo? O professor está garimpando, parafraseando Alencar (2002: 62), na citação de Fernando de Azevedo:

Moço, eu estou nesse negócio de catar pedras faz bem uns cinqüenta anos. Muita gente me dizia para largar disso – cadê coragem? Cada um tem que viver procurando alguma coisa. Tem quem procure paz, tem quem procure briga. Eu procuro pedras. Mas foi numa dessas noites da minha velhice que entendi porque eu nunca larguei disso: só gente que garimpa pode tirar estrelas do chão!

Esse exercício de garimpar constitui a base do compromisso profissional. As estrelas que tiramos do chão marcam a recusa à ditadura dos fatos consumados e a ditadura fatalista de um presente que aparenta ser invencível, tamanhos são os obstáculos cotidianos com os quais nos deparamos (Cortela, 1999:156).

Afinal de contas, por que somos educadores e educadoras? Por que dedicamos toda uma existência a essa atividade cansativa, econômica e socialmente prejudicada e desvalorizada, entremeada de percalços? Tenho uma suspeita: por causa da paixão. (...) Paixão por uma idéia irrecusável: gente foi feita para ser feliz. E é esse o nosso trabalho; não só nosso, mas também nosso. Paixão pela inconformidade de as coisas serem como são; paixão pela derrota da desesperança; paixão pela idéia de, procurando tornar as pessoas melhores, melhorar a si mesmo ou mesma; paixão, em suma, pelo futuro (Ibid., p. 157).

Os quatro elementos, as cenas do cotidiano dos professores(as), as pedras, as estrelas, a paixão... indicam um sentido na/da construção da identidade dos professores(as) que estamos sendo.


Bibliografia:

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[1] Pedagoga e Doutoranda no GEPEC-UNICAMP.
[2] Pedagoga, Psicóloga e Doutoranda em Educação no GEPEC- UNICAMP.
[3] Pedagoga e Mestre em Educação no GEPEC- UNICAMP.
[4] Pedagoga, Psicopedagoga e Doutoranda em Educação no GEPEC- UNICAMP.




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